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terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Espiritualidade do Natal

"Há dentro de nós uma chama sagrada coberta pelas cinzas do consumismo, da busca de bens materiais, de uma vida distraída das coisas essenciais.

É preciso remover tais cinzas e despertar a chama sagrada.
E então irradiaremos. Seremos como um sol.

Esta palestra se realiza na época que antecede o Natal.
Talvez seja este o significado maior da festa que vamos celebrar:
a espiritualidade na carne quente e mortal, assumida pelo Verbo da Vida.

O espírito do Natal, sua espiritualidade específica, é exatamenteo oposto do espírito dominante na cultura atual, que é um espírito marcado pelo consumo, pelo mercado, pela concorrência, pela compra, pelo negócio, pelo interesse. Um espírito que transforma tudo em mercadoria, do sexo a Deus.

O Natal vive da gratuidade, da doação, da singeleza, da convivialidade, do dom de se fazer presente ao outro.
Vive da alegria de ver uma vida nascendo, porque não pode haver tristeza quando nasce a vida. E de saber que essa criança que está aí, o divino Infante, somos nós, fundamentalmente.
Porque há em nós uma dimensão de criança dourada que nunca se perdeu e que permanece para além da idade adulta, reclamando seu direito de entender a vida também como algo lúdico, algo leve, algo que vale por si. Pouco importam os interesses em que investimos na nossa vida. Ela vale por si mesma, porque é um valor supremo.

O Natal quer ressuscitar essa dimensão espiritual no ser humano, quer anunciar que é nessa atmosfera que Deus também se acercou de nós. Não veio como um césar poderoso nem como um sumo-sacerdote, menos ainda como empresário ou filósofo. (Lembremos a frase de Fernando Pessoa: "Jesus não entendia nada de finanças nem consta que tivesse biblioteca" ). Ele se aproximou na forma de uma criança pobre que nasce no subúrbio, no meio de animais. Para que ninguém se sentisse distante Dele, para que todos pudessem experimentar o sentimento de ternura que desperta uma criança que queremos carregar no colo e sobre a qual nos vergamos, maravilhados.

Este é o caminho que Deus escolheu para acercar-se de nós, para poder andar conosco por nossos estreitos caminhos.
Talvez seja um Deus que não nos explique a razão do mal do mundo, mas que sofre junto conosco.
Talvez não nos explique por que tanto trabalho para tão pouca felicidade, mas trabalha junto, e se faz carpinteiro. Assume tudo o que é radicalmente humano.
Chora expressando a tristeza com a morte do amigo Lázaro. Entretém amizade com duas mulheres, Marta e Maria, e com Maria de Magdala, chamada de sua companheira, por mais escandaloso que isto fosse naquele tempo. Enche-se de ira sagrada e toma do chicote quando vê o espaço sagrado sendo transformado num mercado. Mas também se enche de indizível ternura abraçando as crianças e dizendo, resolutamente, que ninguém as afaste.
Tudo isso é Jesus, tudo isso é Deus na nossa carne quente e mortal.

Um Deus que encontramos dentro de nós e de nosso cotidiano, sem precisar buscá-lo aqui e ali, mas buscá-lo na nossa interioridade, onde Ele, um dia, penetrou e de onde nunca mais saiu, nos fazendo filhos e filhas, semelhantes ao seu Filho Jesus.
E quando chegar a nossa hora de partir, Ele vem, toma o que é Dele e leva para o Seu Reino, isto é, nos leva cada um para Sua casa, porque nós, Seus familiares, pertencemos à casa Dele.

Este é para mim o significado maior da encarnação, do mistério do Natal que celebramos, um dos pontos altos da espiritualidade cristã. Em um mundo altamente conflituoso, ameaçado de todas as partes, podemos fazer um parênteses e dizer: "Agora não. Agora vamos festejar, vamos comer, vamos ser todos irmãos e irmãs, vamos acender a luz na convicção de que a luz tem mais direito do que todas as trevas. Fazemos isso tudo por causa Dele, Jesus, o Filho bem-amado, porque somos irmãos e irmãs Dele, também filhos e filhas bem-amados.

Se reservarmos em nossa vida um pouco de espaço para essa espiritualidade, ela vai nos transformando, pois este é o condão da espiritualidade: produzir uma transformação interior. Essa transformação acenderá nossa chama interior que produz luz e calor e nos dá mil razões para vivermos como humanos. Assim, caminharemos serenos neste mundo, junto com outros e na mesma direção que aponta para a Fonte de abundância permanente de vida e de eternidade.
E mergulharemos nessa Fonte de espiritualidade, que é Fonte de espírito, de vida, de amorização, de realização e de paz."


(Leonardo Boff, Espiritualidade: Caminho de Transformação)




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